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quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Quem tem medo de Marcel Duchamp?

            
É preciso pensar a arte em sua dimensão utópica, capaz de fugir ao controle do mercantilismo, mesmo sabendo que praticamente todas as vertentes da arte contemporânea dos anos 1960 e 1970 foram abarcadas pelo mercado e tiveram seu teor contestatório diluído. Porém, antes disso, cumpriram a missão de amortecer as imposições do capitalismo e do mercantilismo de tornar todos os objetos existentes em objetos de consumo. O sistema da arte é constituído pelo jogo tenso entre a utopia e as demandas do mercado, nele, o campo de ação política do artista deve estar na arte, fora e além dela, como nos mostrou Marcel Duchamp.
            Na primeira metade do século XX, Duchamp expôs as engrenagens perversas que regulam o sistema da arte, sobretudo a arbitrariedade envolvida na designação dos objetos artísticos. Ele gerou questões que reverberam até hoje, além de colocar o sistema artístico em xeque, subverteu o objeto de arte burguês, promoveu a fusão entre arte e vida e transgrediu os limites tradicionais da pintura e da escultura.
            Se, de um lado, o Cubismo subverteu o ponto de vista renascentista, determinado pela perspectiva de Alberti, ao aceitar uma multiplicidade de pontos de vista. Do outro lado, Duchamp rompe completamente com o modelo Clássico ao destruir a ilusão da “janela” ou moldura que separava a arte do resto da realidade.
            Na juventude, Duchamp pintava telas que tendiam ao Impressionismo, passando pelo Cubismo, até romper definitivamente com a prática estética da pintura com seu “Nu Descendo uma Escada”, em 1912.
            Nessa obra, o artista não desdobra o corpo à maneira cubista, mas a ação que esse corpo faz; ele pinta os estágios do descer a escada. O movimento é o tema da pintura; o que é representado é o devir da ação. No entanto, a obra revela ao artista o quanto a pintura é inadequada ao seu projeto de fundir arte e vida. O devir, segundo Duchamp, é parte constituinte da realidade, mas o suporte estático não comporta a representação do devir de tudo. A partir daí, ele passa a se declarar um “antiartista”.
            Com seus ready-mades, objetos comuns pré-fabricados, com ou sem alterações, retirados de seus contextos originais e elevados ao status de obra de arte, Duchamp deixa de lidar com a arte em termos de conteúdo (forma, cor, estilo etc), para lidar com o continente. Ao exibir seu ready-made “Fonte” (1917), com o pseudônimo R. Mutt, e declarando-o uma obra de arte simplesmente por sua determinação, Duchamp desloca a ênfase sobre o objeto de arte colocando-a sobre o próprio artista.
            Ao expor objetos do cotidiano, Duchamp evidencia que apenas o local de exibição torna esses objetos obras de arte. Desse modo, o papel dos museus, galerias, salões etc. é colocado em questão. Com esse entendimento, o artista passou a carregar consigo o seu museu portátil, constituído de notas, recortes, fotografias e outros objetos reunidos em caixas. Segundo Duchamp, essas caixas poderiam estar vazias ou mesmo nunca serem abertas, determinando que qualquer coisa, em determinado momento, poderia ser uma obra de arte.
            Assim, Duchamp deixa claro que a estética é distinta da arte, pois somente o local de exibição é que torna um objeto obra de arte. O artista, com Duchamp, deixa de ser o pintor ou o escultor, para ser aquele que exibe e determina o que é arte. A escolha dos objetos substitui o fazer do artista. Nos ready-mades, apenas a assinatura nos objetos indica algum trabalho manual. Ao escolher objetos, o papel do artista é alterado, passando a se confundir com o papel do galerista, o do marchand, o do curador, etc.
            As informações e instruções que acompanhavam os ready-mades criavam jogos de palavras que enfatizavam a ruptura com o trabalho manual do artista. Os ready-mades eram acrescidos de títulos que, isolados, poderiam ser considerados como ready-mades em palavras. Em geral, os títulos eram autoreferentes, de modo que a linguagem poderia substituir o próprio suporte ou mesmo o material da arte como no caso: “o título é uma cor”.
            Duchamp problematiza ainda mais o papel do artista ao dizer que o observador faz a obra. De acordo com as leis da cibernética, ele afirma que o observador modifica o objeto observado. Em sua obra inacabada “O Grande Vidro”, por exemplo, o observador é refletido no interior da obra, indicando que este faz parte dela.
            Duchamp desmontou a ideologia do artista (ingênuo ou passivo) exterior ao sistema ao qual a arte faz parte. O papel ativo do artista passa a consistir em especular a respeito da exposição dos objetos independente de marchands ou galeristas. Ele também evidencia a importância da linguagem na constituição desse jogo de designação dos objetos de arte. Como os jogos de linguagem de Wittgenstein que não esclarecem a mensagem, mas o sistema da língua e seu uso, as proposições de Duchamp, acrescidas aos ready-mades, não esclarecem os objetos e sim o funcionamento da arte.
            De várias maneiras, Duchamp apresenta em germe desenvolvimentos que os artistas depois dele irão impulsionar: a pop art, o minimalismo, a arte conceitual, as instalações, as performances e os happenings.