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terça-feira, 18 de junho de 2019

Anita Malfatti: "A Boba"

("A Boba", de Anita Malfatti - 1915 - 1916)

Duas notícias do mundo das artes me fizeram pensar muito, recentemente, em Anita Malfatti. A primeira, diz respeito à obra “A Boba” (1916), de Anita, que foi escolhida pelo artista, escritor e performer, Wagner Schwartz, como base para seu mais novo trabalho. Schwartz sofreu violentíssimos ataques pela performance “La Bête”, em 2017. Em seu novo projeto, o artista reflete, não propriamente sobre os ataques que sofreu, mas sobre o corpo que recebeu os ataques. Do mesmo modo, a obra de Anita representa um corpo muitíssimo atacado que amadurece e evolui no tempo. O artista reconhece em “A Boba”, a nação brasileira. Uma nação que tem a violência no governo, mas que também começa a evoluir e a gerar novos movimentos que nos aproximam uns dos outros.

A segunda notícia é a do projeto, que anda a todo vapor, para transformar Tarsila do Amaral em ícone pop nacional, aos moldes de Frida Kahlo. Com isso, creio que nomes como o de Anita Malfatti também poderão ser resgatados. Anita tem uma história de vida incomum, assim como Tarsila. Sua obra, no entanto, é considerada de maior relevância. Anita foi destruída por críticas assim que começou a tentar mostrar sua arte. Com isso, o Brasil teria perdido sua única chance de ser realmente modernista. O que sobrou, dizem, foi a arte “programática-ideológica-nacionalista”, de artistas menores, como Di Cavalcanti, Tarsila do Amaral e Portinari.

Anita nasceu na cidade de São Paulo, em 1889, com uma atrofia no braço e na mão direita. Depois de tentativas frustradas para corrigir o problema, aprende a escrever e a desenhar com a mão esquerda, com ajuda da educadora norte-americana, Miss Brown. Com a morte do pai, sua mãe, a também norte-americana Eleonora Elizabeth Krug, para garantir o sustento da família, passa a lecionar idiomas, desenho e pintura em casa. Anita passa a maior parte de seu tempo de criança nas aulas da mãe. Aos 13 anos, sem saber o que realmente queria da vida, decide se suicidar num trilho de trem, próximo da estação da Barra Funda. Segundo a própria Anita, tal incidente foi fundamental para alavancar sua carreira artística:

“Eu tinha 13 anos, e sofria porque não sabia que rumo tomar na vida. Nada ainda me revelara o fundo da minha sensibilidade [...] Resolvi, então, me submeter a uma estranha experiência: sofrer a sensação absorvente da morte. Achava que uma forte emoção, que me aproximasse violentamente do perigo, me daria a decifração definitiva da minha personalidade. E veja o que fiz. Nossa casa ficava próxima da estação da Barra Funda. Um dia saí de casa, amarrei fortemente as minhas tranças de menina, deitei-me debaixo dos dormentes e esperei o trem passar por cima de mim. Foi uma coisa horrível, indescritível. O barulho ensurdecedor, a deslocação de ar, a temperatura asfixiante deram-me uma impressão de delírio e de loucura. E eu via cores, cores e cores riscando o espaço, cores que eu desejaria fixar para sempre na retina assombrada. Foi a revelação: voltei decidida a me dedicar à pintura.”

Depois disso, com financiamento de um tio, Anita estudou arte por 4 anos em Berlim, na Alemanha. De volta ao Brasil, a artista realiza uma exposição para pleitear uma bolsa de estudos na França. O senador José de Freitas Valle, de quem dependia a concessão da bolsa, visita a exposição e não gosta das obras de Anita, chegando a criticá-las publicamente.

Entre 1915 e 1916, mais uma vez financiada pelo tio, Anita estuda arte em Nova York. Ao retornar ao Brasil, em 1917, a artista reune 53 obras de influencia expressionista para a “Exposição de Pintura Moderna Anita Malfatti”. A exposição é duramente criticada por Monteiro Lobato, mas torna-se um marco para o movimento modernista brasileiro. As críticas não impediram que Anita, mais tarde, ilustrasse livros de Monteiro Lobato.

Em 1923, aos 33 anos de idade, Anita ganha uma bolsa para estudar arte na França, onde permanece por cinco anos. Novamente no Brasil, em 1928, realiza sua quarta exposição individual. Depois dessa exposição, Anita dedica-se ao ensino escolar, trabalha na Escola Normal Americana e também na Escola Normal do Mackenzie College. Em 1933, Anita instala seu ateliê no bairro de Higienópolis, onde leciona pintura, inclusive para Oswald de Andrade Filho.

A artista morre na Santa Casa de Misericórdia, aos 72 anos, em 1964.


quarta-feira, 8 de maio de 2019

ANATOMIA PARA COLORIR (Faculdade de Letras - UFG)


A ideia de fazer uma exposição chamada “Anatomia para colorir” surgiu durante um garimpo pelos sebos da cidade em busca de livros antigos de anatomia que pudessem servir de suporte aos meus experimentos com o desenho e minhas reflexões sobre o corpo.

Numa das lojas que visitei, encontrei uma versão antiga do livro “Anatomia: Manual para Colorir”. A proposta do livro, segundo seus autores, é de proporcionar uma oportunidade de se familiarizar com o corpo humano, suas estruturas e funções, com um “mínimo de memorização mecânica e um máximo de satisfação”, considerando que “colorir é um dos métodos de aprendizagem mais eficazes e agradáveis”.

Achei graça na proposta. Mesmo assim, levei o livro pra casa e comecei a seguir o manual. Vasculhei pranchas e mais pranchas desenhadas com fatos e conceitos sobre o corpo humano. Atravessei células, tecidos epitelial, conjuntivo e muscular, sistemas esquelético, muscular, cardiovascular, linfático, respiratório e assim por diante, numa ramificação quase infinita de estruturas relacionadas. E, desse modo, mais do que aprender esquemas sobre o corpo humano, comecei a perceber uma espécie de gramática imagética pronta para ser explorada e subvertida pelos meus experimentos.

Assim, nos meus desenhos, começaram a surgir estruturas de revestimento de crescimento orgânico com aspecto celular nucleado, estriado ou mesmo de estrutura capilar. Surgiram ainda os elementos transparentes e sobrepostos, criando, por vezes, texturas lisas, por outras vezes, texturas rugosas. À medida que os experimentos foram se multiplicando, apareciam os corpos humanos inventados, as anatomias híbridas, as anatomias animais e os corpos seccionados.


Todo esse exercício de invenção demandou um trabalho de experimentação com os materiais. A opção pelo uso de cola sem conservantes na fixação de camadas transparentes deve-se ao nosso desejo de tratar algumas das obras como organismos vivos, que continuarão a sofrer modificações ao longo do tempo.

Alguns trabalhos chegaram a provocar uma tensão nos limites do desenho. Da necessidade de desenhar em camadas, surgiram as sobreposições, levando alguns trabalhos a um nível de relevo que ultrapassam a superfície desenhada. Esses desenhos tornaram-se verdadeiras “assemblages”, criando, dessa maneira, uma junção do desenho com a escultura. 


Os trabalhos apresentados na exposição são apenas um recorte de um experimento que ainda terá muitos desdobramentos conceituais e materiais. Trata-se de um processo de criação em movimento e inacabado. A pesquisa com os materiais somada às reflexões sobre o corpo (ou melhor, sobre os corpos: humano, animal, vegetal e mineral) continuam – não sei bem em qual direção.



ANATOMIA PARA COLORIR
Abertura da exposição: dia 10/05 às 11:45h
Local: Faculdade de Letras (FALE / UFG)
Campus Samambaia

segunda-feira, 14 de janeiro de 2019

A CICATRIZ-CONVITE (texto de Dheyne de Souza)

Patworkpat, pseudônimo e marca da artista plástica Patrícia Ferreira, é centrada no desenho da figura humana e na experimentação com diversas técnicas e materiais. Com a série “desenhos desesperados para viver momentos difíceis”, a artista apresenta um exercício estético e psicológico, em vermelho e preto, que explora a possibilidade da transformação da dor em reflexão.


Vasos, silêncios, olhares, falanges, dentes, fios, vértebras, gestos, encontros, abandonos, abismos, abraços, gritos, riscos agudos, cores fortes, sons extremos. Os desenhos de Patworkpat nos questionam e também nos respondem, mas são labirintos instáveis. O corpo penetra a dor ou a dor penetra o corpo? Parece que, de dentro da dor, reconhecemos nossos membros. Seja na voz por trás da mão que cobre a boca, seja nas linhas finas que mumificam o corpo, seja no grito trancafiado no negro, seja nos dentes que mordiscam limites.


Entre o contato íntimo com esse nu de nós, olhares inquietantes circundam o que ficou dos marcadores permanentes, lápis de cor, canetinhas, nanquins, um cotidiano de tantas dores que adormecemos nas falas, nas aparências, quem sabe até nos olhares. Mas os “desenhos desesperados para viver momentos difíceis” parecem querer dizer. O que queremos ouvir? São secretas as suas histórias. O que contamos das nossas?


Podíamos ousar dizer que, quanto mais próximos dos vãos que deixaram os traços, mais cúmplices do que não há para dizer. Talvez seja abraçando a dor que se reconheça o alento. Talvez seja mutilando-a que se contorne o silêncio. Quem sabe arrancar o dente que mastiga mal as palavras quando a boca inteira lateja? Quem sabe encontrar a saída quando o túnel todo é escuro? Quem sabe, da foz, curar a fonte das próprias hemorragias?


O que parecemos des-cobrir nos desenhos de Patworkpat parte de lugares em que entramos ora imprudentes, ora cautelosos. De qualquer forma, corajosos. Não é fácil pisar no chão onde dormem (o que sonham?) nossas penas, nossos medos, nossos desesperos. A natureza selvagem pede passagem (entramos?). Entre o medo da morte e o desejo do fim, a margem tantas vezes se esconde. E há inúmeras v(e)ias.


É que a dor bate, mas, muitas vezes, oferece a outra face. Porque pede a nossa conduta. O corpo é de toques e também de ossos. É de dedos e de artelhos. É de voz e de mudez. Como reconhecer de onde vazam os sentimentos? Como suturar o que contorna terminações nervosas, estímulos, (suss)urros? Somos humanos em tempos difíceis. Não temos domínio da vida. E de nossos rebentos? Cicatrizes.


Quem sabe o que os “desenhos desesperados para viver momentos difíceis” sulcam no papel e em nós seja mais que relevos. Quem sabe, com seus olhares contornando o dentro, possamos chegar onde moram nossos próprios relentos, e aprender com eles. Quem sabe, levantando perguntas disformes e rubras, cheguemos ao osso, ao som, à voz. Quem sabe o que a nossa dor diz ou derrama, ou desmaia, ou levanta, ou sustenta? Somos nós, a penas. E o que dizer, então, senão o que o indizível da dor nos desenha? As cicatrizes, que nos contam – ou cortam. Trouxeram coragem?