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segunda-feira, 14 de janeiro de 2019

A CICATRIZ-CONVITE (texto de Dheyne de Souza)

Patworkpat, pseudônimo e marca da artista plástica Patrícia Ferreira, é centrada no desenho da figura humana e na experimentação com diversas técnicas e materiais. Com a série “desenhos desesperados para viver momentos difíceis”, a artista apresenta um exercício estético e psicológico, em vermelho e preto, que explora a possibilidade da transformação da dor em reflexão.


Vasos, silêncios, olhares, falanges, dentes, fios, vértebras, gestos, encontros, abandonos, abismos, abraços, gritos, riscos agudos, cores fortes, sons extremos. Os desenhos de Patworkpat nos questionam e também nos respondem, mas são labirintos instáveis. O corpo penetra a dor ou a dor penetra o corpo? Parece que, de dentro da dor, reconhecemos nossos membros. Seja na voz por trás da mão que cobre a boca, seja nas linhas finas que mumificam o corpo, seja no grito trancafiado no negro, seja nos dentes que mordiscam limites.


Entre o contato íntimo com esse nu de nós, olhares inquietantes circundam o que ficou dos marcadores permanentes, lápis de cor, canetinhas, nanquins, um cotidiano de tantas dores que adormecemos nas falas, nas aparências, quem sabe até nos olhares. Mas os “desenhos desesperados para viver momentos difíceis” parecem querer dizer. O que queremos ouvir? São secretas as suas histórias. O que contamos das nossas?


Podíamos ousar dizer que, quanto mais próximos dos vãos que deixaram os traços, mais cúmplices do que não há para dizer. Talvez seja abraçando a dor que se reconheça o alento. Talvez seja mutilando-a que se contorne o silêncio. Quem sabe arrancar o dente que mastiga mal as palavras quando a boca inteira lateja? Quem sabe encontrar a saída quando o túnel todo é escuro? Quem sabe, da foz, curar a fonte das próprias hemorragias?


O que parecemos des-cobrir nos desenhos de Patworkpat parte de lugares em que entramos ora imprudentes, ora cautelosos. De qualquer forma, corajosos. Não é fácil pisar no chão onde dormem (o que sonham?) nossas penas, nossos medos, nossos desesperos. A natureza selvagem pede passagem (entramos?). Entre o medo da morte e o desejo do fim, a margem tantas vezes se esconde. E há inúmeras v(e)ias.


É que a dor bate, mas, muitas vezes, oferece a outra face. Porque pede a nossa conduta. O corpo é de toques e também de ossos. É de dedos e de artelhos. É de voz e de mudez. Como reconhecer de onde vazam os sentimentos? Como suturar o que contorna terminações nervosas, estímulos, (suss)urros? Somos humanos em tempos difíceis. Não temos domínio da vida. E de nossos rebentos? Cicatrizes.


Quem sabe o que os “desenhos desesperados para viver momentos difíceis” sulcam no papel e em nós seja mais que relevos. Quem sabe, com seus olhares contornando o dentro, possamos chegar onde moram nossos próprios relentos, e aprender com eles. Quem sabe, levantando perguntas disformes e rubras, cheguemos ao osso, ao som, à voz. Quem sabe o que a nossa dor diz ou derrama, ou desmaia, ou levanta, ou sustenta? Somos nós, a penas. E o que dizer, então, senão o que o indizível da dor nos desenha? As cicatrizes, que nos contam – ou cortam. Trouxeram coragem?