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sexta-feira, 16 de março de 2012

a vaca foi pro brejo

Richard Serra, Arco Inclinado, 1981

            O conceito de arte pública existe, como aspecto da vocação da arte, desde a Antiguidade. Nesse sentido, encontram-se as obras integradas à cena cotidiana, como monumentos, nas ruas e praças, de acesso livre. Relacionam-se, também, ao conceito de arte pública, as obras pertencentes aos museus e acervos públicos. 
            Atualmente, o conceito refere-se à arte realizada fora dos espaços convencionais, ou seja, uma arte de “espaços públicos”, como hospitais, escolas, aeroportos etc., mesmo que estes espaços, reservados ao público, sejam de propriedade privada. A ideia dominante é a de uma arte acessível fisicamente e que modifique o ambiente de modo permanente ou temporário.
            Na década de 1970, uma política voltada para a arte pública, em países como a Inglaterra, Alemanha e Estados Unidos, conseguiu subsídios para a realização de obras que, a princípio, estariam descomprometidas com o mercado. Mas as agências “especializadas” em arte pública começaram a se estabelecer. Era o mercado reapropriando-se da arte pública. Essas agências passaram a supervisionar as seleções e contratações de artistas para “projetos públicos”.
            Michael Archer nos lembra das tensões entre o público em geral e a arte, concebida com o total “bem-estar” do público em mente. O “Arco Inclinado”, de Richard Serra, encomendado em 1981, por um programa oficial para a Federal Plaza, em Nova York, era uma escultura de aço, muito mais alta que uma pessoa, que cortava a praça e restringia a visão e a circulação dos pedestres. Em 1985, os protestos das pessoas que circulavam naquelas imediações foram tão intensos que o órgão do governo, que havia encomendado a obra, anunciou que a removeria. Seguiu-se um longo processo que terminou com a remoção da obra, em 1989.
            Esse episódio nos lembra os transtornos causados, recentemente, por um projeto mirabolantemente pensado por um marchand, que levou à construção de uma montanha de terra numa praça entre as avenidas T-2 e T-8, em Goiânia. A construção causou uma sensação de claustrofobia nos passantes, restringindo a visão e impedindo o acesso das pessoas ao local. O pior, em cima desse monte de terra, seriam colocadas duas enormes esculturas de um artista que, por coincidência, era representado pelo marchand.
            A arte pública legítima demanda a articulação de uma ético-política que leva em conta os ambientes, a sociedade e a subjetividade humana. Isso, em oposição ao nivelamento imposto pelo mercado. Não basta espalhar vaquinhas de fibra de vidro pela cidade, dizer que é projeto beneficente, que qualquer um pode ter acesso ao projeto mediante ao envio de uma proposta e reclamar da falta de respeito do público.
            Acredito que tem muito comprometimento envolvido no projeto Cow. Não foi o corpo da vaquinha de certo artista - protesto contra atropelamentos - que foi vilipendiado pelo desrespeito do público, o público é que foi atropelado pela vaca no meio do caminho. Será que antes de colocarem a vaca no meio do caminho, alguém divulgou nas periferias a possibilidade de seus artistas participarem do projeto?
            Uma arte pública que carrega marcas de empresas privadas interrompe o fluxo do potencial produtivo da arte de repensar o real. Como diz Guattari, o artista é o terapeuta do real. Ajustar a arte ao mundo do útil é reduzi-la apenas a um objeto acima do sofá, ou, se for uma vaca, comprada em um leilão, ao lado do sofá.

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